"Conto" de Naína Tumelero.


Dia desses acordei cedo.
Fiz um suco verde como desjejum, não porque havia algo de errado com meu corpo, mas porque estava com vontade de sentir aquele azedinho do limão com a refrescância da maçã.
Tomei um bom banho, vesti a primeira roupa que me apareceu e fui para o trabalho.
Neste dia a presidenta da empresa elogiou muito o meu trabalho e disse que contrataríamos um estagiário. Desses bonitinhos, arrumadinhos e cheirosos que servem até para deixar o ambiente mais bonito. Homem traz beleza pro mundo, não é o que dizem?
Foi uma manhã produtiva, almocei no restaurante perto da empresa. Ao caminhar senti meu tênis confortável, a calça larga que fazia com que os bolsos cheios nem fossem notados.
É bom poder caminhar em silêncio, sem ninguém nos chamando por nomes estranhos, como “gostosa”. Não sei bem o que isso significa.
Como de costume, quase não havia carne no restaurante, isso era coisa da época do patriarcado. Agora, como dizia minha mãe, os buffets são multicolores, a população anda mais saudável, assim como a terra, que brota e rebrota num ciclo infinito de sementes crioulas escolhidas com cuidado pelas agricultoras.
Logo mais terminei meus afazeres no escritório, não se trabalha mais que 6 horas nestes tempos.
Tomei o rumo de casa de bicicleta, como sempre as ciclovias são mais bem equipadas que as vias regulares e eu sempre chego mais rápido e mais disposta.
Quando cheguei meus filhos vieram me abraçar. Estavam cheirosinhos daquele jeito que você quem lê consegue sentir. Havia comida pronta no fogão.
Meu homem veio me receber na porta como de costume e me avisou que logo mais lavaria a louça que estava na pia, que eu não deveria me preocupar.
Nossa família é bem tradicional, eu cuido dos sustentos, e meu homem cuida dos afetos.
É assim que a Deusa quer.
Comi bem e fui para o yoga, na volta estudei um pouco mais, e li uma história para as crianças. Esse momento, como dizem as doutoras, é importante para construir relação com as crias, já que passam a maior parte do tempo com o pai.
Eu já estava vendo isso acontecer, e mesmo sabendo que estava dando o meu melhor no trabalho, também queria receber amor dos meus pequenos, que são meninos, e a vida já não é fácil para os homens por aqui.
Faço o que posso para que não cresçam preocupados com o formato de seus corpos, com os estupros nas ruas e com o sentimento de insuficiência causado pela estadia em casa.
Quando comecei a refletir sobre isso, meu vizinho de cima puxou a descarga e essa realidade sonhada acabou.
Acordei abruptamente.
Eram 6 da manhã. Eu precisava logo misturar meu nescafé na água e correr para pegar o ônibus. Era quarta e meu turno começava às 7:15.
Fiquei com vontade de usar a minha blusa amarela, mas ela era muito decotada, então vesti a camiseta preta de sempre.
Levei a minha maquiagem na bolsa para me maquiar no ônibus. Cara lavada demonstrava falta de capricho, dizia meu chefe.
No correria quase esqueci a minha marmita de arroz com carne moída.
Perto do ponto, um homem mal encarado olhou pra minha bunda e disse que, se pudesse, me chuparia toda. Apressei o passo.
Era quarta, e na quarta era dia de faxina.
Era quarta, e tem quarta toda semana. E segunda, e terça e quinta e sexta.
Também tem sábado e domingo, 90 por ano, aproximadamente.
E tem dia após dia, ano após ano, vida após vida, em que a gente, mulher, sai de casa e nos chamam de nomes que não são os nossos.
Que nos chamam de vadia, de gostosa, de mal comida e de feminista.
Nos chamam de tanta coisa.
Até de “demais”.
“Essa mulher é demais”, eles dizem, mas não nos deixam falar.
“Ouçam essa mulher, que está dizendo que blá blá blá”, e nosso tempo de fala fica restringido, porque até hoje homem pensa que precisa nos autorizar a falar.
Mal sabe que a nossa voz não ecoa por si só. Ecoa em coro, e não espera permissão.
Estamos por aqui, até que todas as mulheres tenham voz e falem.
E é assim que a deusa quer.
E quando sentimos isso, acordar já nem é tão ruim assim.

Nai
17/03/2020

Comentários

  1. A narrativa carregada de pesada realidade foi tecida em tons sutis, leves e coloridos pelo viés da utopia.
    Leio o título "Conto" como um verbo que você conjuga.
    Eu também Naí.

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  2. Sororidade da mais pura, justa e prática cepa. Texto delicioso; a realidade em que ele transita, sim, é terrível e secular. A estética das inversões de posições, de tempos de falas, de mandos e de fazeres cotidianos, geram efeitos intrigantes, surpreendentes. E em ótima prosa poética. Contou com maestria, Nai. Grato.

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