Poesia e Prosa de Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva
Corona nº 2
dois mil e
vinte, março:
o bug atrasou
vinte anos
veio a nós
a peste do
milênio (dos millenials)
mundo dizimado
sem shopping,
sem restaurante
sem ônibus, sem
academia
sem show, sem
puteiro
sem bar, sem
estádio
sem cinema, sem teatro
sem
supermercado…
logo faltará o
básico
ficarei sem meu
cheetos requeijão...
não soframos...
deixem as dores
mais sérias
do lado de
fora…
que elas morram
sufocadas pelo ar contaminado...
deixem as
demais tragédias
pra quem as
está vivendo…
muitos dirão
que é egoísmo
ou
desumanidade…
individualismo,
individualidade
aos meus olhos
sempre são virtudes
a qualquer
hora...
se possível
quando em casa
entre as
cobertas
o videogame
a masturbação
e a luminária
esqueçam até
mesmo
de suas
próprias dores
desde as
menores
até as enormes
e desconcertantes...
estejam
em suas casas
plenos
tranquilos
e
confortáveis...
que os
solitários
recolham-se...
quem tem alguém
enamorado
que transe
que faça nascer
a geração
pós-apocalipse…
quanto a mim
se sobreviver
estará na
próxima entrada
do meu diário
o crime sem
perdão:
em plena peste
deixei faltar
meu cheetos
requeijão.
Duas Clausuras
Para
se viver nesses tempos, é preciso saber lidar com duas clausuras, uma dentro da
outra.
Há,
logicamente, a quarentena… Um alerta vermelho, um alarme que soou como se o
todo o mundo fosse a mesma usina, cujas comportas romperam de repente e
deixaram enxurrar um vírus que pode afogar toda a humanidade de uma vez, sem
distinguir fronteiras.
Há
também outra restrição, esta, pura consequência da primeira. Com todos os povos
de todas as crenças e países, presos em suas casas, em seus próprios espaços,
muitos não buscam diversificar suas atividades e pensamentos, não buscam
enxergar as possibilidades abertas nesses espaços de tempo, não buscam exercer
o Carpe Dien, mesmo com dias tão reduzidos.
Talvez,
nunca tenha sido tão exigido aos indivíduos que eles exercessem sua liberdade
de pensar e agir como agora, libertando-se assim da repetição doentia do
assunto doença. Permito repetir doença para atestar como é desagradável e
perigosamente hiperbólico se ater a um só tema.
Não
prego a negação.
Reforço que, uma vez estabelecida a sua
consciência, não é mais preciso ligar os noticiários pois eles se repetiram, se
repetem e se repetirão no que diz respeito ao vírus que ainda ninguém decifrou
assim tão precisamente. Os veículos, todos, são apenas contadores de morte.
É
tempo de Carpe Dien em suas salas, cozinhas, escritórios, meus amigos…
Deixem que os autores dos livros empoeirados, exilados na última prateleira da
estante voltem para suas mãos, lhes digam palavras de romance de suspense, de
ciência de terror até, Por que não?
Deixem
que os ovos e os fermentos venham às mesmas mãos, deixem que eles formem bolos
e demais delícias quase que espontâneas, não é preciso aprender nesses tempos,
é preciso absorver, fazer…
Botem
para rodar os discos e os CDs, deixem ressoar não os âncoras dos telejornais,
mas Sinatra, Elvis, Ray, Jerry Lee, Nat King Cole, Axl Rose, Freddie Mercury,
Springsteen, Coverdale, Clapton, Lennon, McCartney!
Deixe
a vizinhança saber que você está pensando em vida, não em morte.
John
Keating, indiretamente, ensinou-nos: Quando refém de duas clausuras,
liberte-se, ao menos, de uma delas!
Marinho e o Espírito da Festa
O ano era,
precisamente, mil novecentos e cinquenta e pouco…
O colorido que
começava a tomar forma no distante horizonte de Jequitinhonha, quanto mais se aproximava, mais se assemelhava a uma
miragem.
Era uma
pequena multidão. Vinha contando piadas, tocando cornetas, e presepando
presepadas em veículos improvisados, monociclos, bicicletas, triciclos e uns
pangarés que puxavam as charretes mais esquisitas que alguém já viu na vida.
Outros tantos cavalos magros traziam quem era menor, crianças e os anões,
estes, vestindo as roupas mais cintilantes e calçando sapatos maiores que os
pés.
O pessoal da
cidade sabia que era o circo chegando. Era sempre um bom susto, uma bela
surpresa.
O circo sempre tem essa magia de juntar todo
mundo na mesma euforia. A molecada pelas ruas já agitava a paciência das mães,
pais e avós, berrando alto como se estivessem vendo super-heróis pela primeira
vez. Fato é que pais, mães e avós também sentiam uma alegria vir, como se suas
crianças interiores também fizessem o mesmo escândalo ao ver aquelas cores.
Em
Jequitinhonha, havia uma grande estalagem que, de bom grado, abrigava o circo
sempre que ele vinha. O terreno detrás tinha um vasto pasto, uma enorme
clareira cercada de pinheiros, lugar cativo para a quase infinda lona lilás.
Pois bem,
todas as gentes depois de abraçarem e presentearem os palhaços e demais
arteiros com bolos e serpentinas, logo passavam a mão nos panos e estacas,
correriam pra montar o picadeiro antes que do pôr do sol.
Não eram só as
crianças que enxergavam o circo como uma liga de super-heróis, todos os locais
nutriam esse sentimento e adiantavam o serviço pra que na tarde seguinte, o
espetáculo já pudesse acontecer sem atrasos ou chorumelas. Artistas, por outro
lado, passavam a noite muito bem dormida, pra que estivessem com a corda toda
quando fosse a hora do riso rolar.
Amanheceu o
amanhã, e cedo, já se formava uma longa fila diante do gabinete de madeira
designado pra servir de bilheteria. A
serpente de gente se embrenhava pelos pinheirais, ia e voltava umas três vezes.
Os
cirqueiros, de dentro da estalagem,
ouviam o burburinho e aprontavam todas as suas peripécias.
Um menino em
especial, filho do dono do circo, era, diziam, o espírito da festa. Marinho
tinha talentos que surpreenderiam até os mais ranzinza dos rabugentos. Ele
estava lustrando sua pequena sanfona ao lado da cama, era sempre o último a
descer. Marinho era a estrela do show, última e apoteótica atração.
Em
Jequitinhonha, o menino sempre ficava no mesmo quarto, já estava acostumado a
ver tudo acontecer através da sua janela e de um furo na lona, até que fosse a
hora se se apresentar.
O anúncio do
caloroso espetáculo já ecoava nas listras da lona sob os gritos do povo:
Os palhaços
Lontroso & Paspalho já faziam suas palhaçadas, bofetadas, bexigas d’água,
piadas infames, chutes no traseiro, tortas na cara… A mulher barbada (enorme)
aparava seu bigode com uma tesoura gigante diante de um espelho que a deixava
magricela… O homem da corda-bamba com seu grada-chuva de frevo, caminhava por
entre os trapezistas lá no alto, o do canhão tinha a cabeça de aço e ficava
sempre grudado, depois do tiro, num grande alvo amarelo.
Leões e outros
bichos já estavam proibidos nos circos, então os animais ficavam por conta dos
anões que batalhavam entre si, como cavaleiros medievais montados em cabos de
vassoura. A música era piano ao vivo, microfonado pelos equipamentos da rádio
local.
Todo esse
santo pandemônio acontecendo e eis que, Marinho, lá da sua janela, avista, por
entre o furo, nas arquibancadas, um sujeito troncho metido a Clark Gable. Este
canastrão puxa das internas do paletó um baita revólver do mais famoso calibre.
Marinho conhecia o vilão, era um tipo que, sabe-se lá por quê, tinha verdadeira
fixação por Maria, sua mãe e sempre quis, a todo custo, acabar com a vida e o
império circense de Januário, seu pai.
Sem
pestanejar, Marinho mirou a estilingada bem no dedo do gatilho do Clark Gable
de araque.
Antes que alguém pudesse perceber algo errado,
a pedrita desviou o tiro, o ricochete furou uma lata que ficava num outro
canto. E o melhor? Ninguém viu nem ouviu nada disso. Todos estavam ocupados
demais vendo o circo acontecer. De certo, acharam que aquele estalo veio de Lontroso
soltando pum com os sovacos ou Paspalho com seus trejeitos engraçados,
ajeitando a cueca por cima das calças
O pequeno
herói nem sequer se abalou, até mesmo aquilo, na sua cabeça de garoto esperto,
talvez, fizesse parte de um ato, de uma brincadeira.
Marinho desceu
as escadas, entrou por trás da lona como sempre fazia. Empunhando sua
sanfoninha, tocou, singelamente, sob a luz do holofote, O Luar do Sertão… Enquanto
entoava as últimas notas, quis olhar nos olhos do vilão, mas o lugar na
arquibancada já estava vazio, aquele Clark Gable de meia tigela já era
história, poeira no vento.
O circo havia sido consagrado por
Marinho, mais uma vez…
Um garoto muito vivo havia salvado o dia, o
circo, o próprio pai e toda aquela ocasião…
Marinho havia
mesmo garantido o espírito da festa, conforme diziam por toda aquela região…
E o melhor de
tudo isso? Ninguém jamais soube dessa parte da história.
Fábio, é uma honra muito grande ter você como autor neste blog. É também um prazer enorme que seu texto remonte a nosso encontro, no CIC, com o querido Mário Motta. Abraço "soroterno".
ResponderExcluirAgradeço imensamente pelo espaço e mais ainda pela oportunidade da Oficina, professora. O propósito de toda Ate é o compartilhamento. Mesmo na quarentena, damos um jeitinho. Fico feliz que tenha gostado do texto. Estar aqui é uma alegria e uma honra.
ExcluirUm Abraço,
Fábio.
Que lindo texto ,parabéns Fábio adorei
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bom, pessoal da nossa Oficina/"carpintaria"...Os contos e textos estão sendo construídos (e paridos)....Mandem para a profª Edna e acompanhem as postagens aqui neste espaço e lá em meu Perfil/facebook. Estou adorando os textos. E vamos conversando com cada um de vocês (pelo whatsapp) e diminuindo a distância deste "isolamento" físico. Forte abraço e Parabéns a todos!
ExcluirGrande e querido Fábio... Bálsamo e tiro certo. Feito a trajetória da pedra lançada pelo menino Marinho, em teu lindo conto, direto de tua imaginação de contador de histórias, sensível, detalhista, criativo e amoroso. Com o passar do tempo, guarde sempre uma cópia (arquivada) desta primeira versão do conto; e volte a lê-lo como experimento e prazer (em voz alta, interpretando, contando e vivendo a narrativa) e reescreva e reescreva (o original ficará guardado, momento único)....e algo mágico acontecerá (sei que sim!)...você irá perceber novos caminhos, soluções alternativas, sacadas incríveis...Grato por aceitar o nosso desafio. Parabéns!
ResponderExcluirParabéns Fabio, é um ótimo texto onde se denota a sua veia poética. O texto tem melodia, rimas, enfim, uma porção de ingredientes que o tornam leve e agradável de ler. Abraços
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