Pandemia. Allan Jantsch.


Eram tempos de calamidade, a cidade toda padecia em meio a doenças e

contágios. As notícias não eras as melhores. As ruas estavam vazias.

A orientação que recebera era de ficar em casa, em isolamento, uma vez que o
passar do tempo trouxera consigo a debilidade física, natural a pessoas de sua idade. Meio a contragosto, já estava há alguns dias enclausurada e sabia de cor toda a extensa
programação da televisão à cabo.

Viúva já há bom tempo, raramente recebia a visita dos filhos, pois ambos
residiam em outra cidade, de modo que se habituara a ser sozinha, tendo apenas a televisão e um velho rádio como companhia. Em juventude fora alegre e comunicativa, porém a idade e a solidão, naturalmente tornaram-na ranzinza. Sentia-se culpada por ter permitido que aquele sentimento negativo ditasse seus dias.

Tanto tempo naquelas condições lúgubres davam-lhe uma sensação de aniquilamento total das forças. A atmosfera era pesada.

Naquele dia em especial, o tempo parecia passar em câmera lenta, os batidos canais que zapeava com rapidez, já causavam enfastio, de modo que recorreu ao telefone celular, quase como uma tomada de folego naquele clima sufocante. Releu mensagens antigas, porém a sensação de abafamento não se atenuou, até que em um átimo, nas conversas com o filho, descobriu uma indicação de filme que passara despercebida, e ao clicar fez saltar na tela um antigo filme em preto e branco.

De início, sentiu um misto de melancolia e tristeza, pois a trilha alegre do filme a fez recordar seus tempos de mocidade, onde saía com frequência e se divertia nos bailes de salão da comunidade onde residia. Em pouco tempo entreteve-se com o filme como há tempos não se distraía com algo. Uma verdadeira conexão.
- Maria 38, Maria 38!!! - repetia ela sem parar.
Com o desenrolar da trama, foi se soltando e sentiu-se bem-disposta. As cenas de maternidade da personagem principal fizeram com se recordasse de sua própria
maternidade e do sentimento de amor e carinho que uma mãe tem seu filho. Lembrou-se de que o amor de uma mãe por um filho tem o mágico poder de sustentar o mundo.

Identificou-se, contudo, com a inocência e a alegria do personagem principal, o menino chamado Marinho. A lembrança da doce infância que tivera inundou
rapidamente seu coração e transbordou pelos olhos. Era a primeira vez em tempos que
esboçava um sorriso franco, aberto. Tinha os olhos marejados e o coração pulsando vida.

Era isso, finalmente tinha entendido.

Depois de anos enclausurada, voltou a viver...

Comentários

  1. Allan, o teu sensível e poético conto concretiza aquela magia de que falam o Ítalo Calvino e o Umberto Eco, "a obra, o texto, o filme, a peça, só se completam na cabeça do leitor, do espectador, do outro". Você deixa as emoções, as sensações motivarem as pulsões mais escondidas lá da memória. E num movimento nostálgico (*veja o filme “Nostalgia”, de Andrei Tarkovsky), vai tecendo, misturando histórias (personagem e o filme) e criando um texto com imagens, detalhes, miradas, cenas e percepções que ficam ali nas entrelinhas e, ao final, a espera do complemento do leitor. E se revelam na beleza da narrativa. CARPINTARIA: Com o passar do tempo, guarde sempre uma cópia (arquivada) desta primeira versão do conto; e volte a lê-lo como experimento e prazer (em voz alta, interpretando, contando e vivendo a narrativa)....e algo mágico acontecerá (sei que sim!)...você irá perceber novos caminhos, soluções alternativas, sacadas incríveis...frases que faltam, termos especiais, mas principalmente frases e construções que sobram (gorduras). Vá exercitando, experimentando, fazendo as alterações (sem receio, sem pudores, pois o texto original é teu mesmo...e está lá, seguro e guardado como uma pequena joia em teu arquivo da nossa "Oficina/carpintaria". Parabéns...e gratíssimo pela arte, pela parceria. Escreva, mais, mais...sempre! Gratíssimo. (Gilberto Motta/Oficina de Textos Curtos 2020)

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