Texto de Caroline Vetori


hoje dei pra falar com os objetos. primeiro pensei: qual seria, de fato, a diferença de ficar num diálogo fictício com um objeto ou com um ser humano? vai saber se na concretude do que me cerca eu encontro algo vivo. porque ando cansada de na vida que me cerca encontrar o concreto. tudo morre prematuro demais. a cama já estava impregnada de mim. precisava de algum distanciamento mínimo pra conseguir montar um set perfeito desse diálogo mentiroso. o quarto é demais íntimo do meu ser. não que intimidade não seja importante na busca desse algo que não sei muito nomear. mas meus pensamentos já são pequenos ácaros que tomam as superfícies. mas minha voz são mosquinhas insistentes que entram pelas frestas e não param de zumbir quando eu quero. precisava me causar algum desconforto, me colocar diante ao vazio. porque ando cansada do conjunto vazio. porque mais com menos dá menos. topei com o espelho no corredor e ele era um disco riscado. nada diferente dos vinis que transitavam na tela agora preta do celular. parei entre portas, não dava pra forçar a barra pra uma conversa. será que um dos problemas é esse: buscar conversas nas superfícies concretas? o espelho me olhou e agora, além do seu monólogo ensurdecedor, jogava meus olhos contra mim. não quero me olhar desse jeito, na violência das retinas lançados contra minha fronte. não há olhar, meus globos oculares espatifados no centro do rosto disseram, na frieza de um reflexo morto. corri até o quarto, precisava de algum conforto e quando ia me fundir aos lençóis, fechar os olhos, adormecer e sonhar com vida o celular toca: oi. tudo bem? tudo bem. e com a fúria de quem vê a terra sendo queimada. e com a fúria de quem vê a morte dos vivos...ergui meu corpo tão cansado de ausências e ali a imagem cruel da xícara com o café já frio. tudo passado da hora. tudo morno. metade cheio. metade vazio. e pego o pequeno universo digital e afundo no líquido amargo. eu precisava entender o amargor que lhe era precedente. metade cheio. metade vazio. e quebro a xícara contra a parede. saio, às pressas, com medo que o amargo manche minhas paredes íntimas. e pego sem delicadeza a vassoura. junto o balde. volto ao meu refúgio. sai mancha. o cheiro de água sanitária toma conta das entranhas. a vassoura observa minha pequena obsessão frenética. arredo a cama e começo a varrer, como se pudesse mover tudo que virou pó e ainda teima em seguir em algum canto. vassoura é mulher? você que só toca a sujeira, o resto dos dias. você que só serve pra limpar. você que só é conveniente quando precisam de você. você que tem função. se fosse buscar a boca da vassoura onde estaria? no chão. se fosse buscar os olhos da vassoura onde estariam? no chão. se fosse buscar mão...ah, não. você não pode pegar, desejar. você foi feita pra mãos e desejos alheios. que absurdo seria uma vassoura que tivesse boca e falasse dos seus desejos. que absurdo seria uma vassoura que não quisesse varrer. não serve. se fosse buscar pés...ah, não. você não pode andar. você foi feita pra ser levada onde os outros querem. você foi feita pra ficar quieta, bem quietinha na dispensa do mundo. eu e a vassoura, talvez abraçadas, talvez dançando idiotas no meio do quarto em silêncio falando sobre as ausências de vida.

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